quarta-feira, 2 de março de 2011

Vida...Assuma as rédeas


Excelente texto de Alessandro Meiguins (Colunista e escritor da revista digital Vida Simples)  sobre as escolhas pessoais, a questão da Disciplina e como as mesmas influenciam nossa vida.

"A verdadeira disciplina está em perseguir objetivos e caminhos definidos por você mesmo. Mas sem se torturar e sempre reservando momentos para festejar"

Imagine só se o caminhão de lixo deixar de passar na sua rua. Se os semáforos pararem na hora do rush. Se o amigo com quem você marcou hora não chegar nunca. Se a luz acabar e não voltar. Se a final do campeonato não tiver dia nem hora para acontecer. Se sua empresa não depositar o pagamento no dia 5. Tente imaginar tudo ao deus-dará, cada um por si, uma convivência que é pura incerteza.

Difícil a vida assim, né? Essa brincadeira ajuda a gente a perceber que a sociedade está lotada de rotinas e regras. E que elas fazem algum sentido. No fundo, facilitam a existência e permitem que as coisas funcionem melhor ou simplesmente funcionem. Está aí um bom começo para compreender também a importância da disciplina pessoal, essas rotinas e regrinhas que valem para cada um de nós e que devemos seguir.

Devemos?
Na verdade, a primeira reação das pessoas quando falamos de disciplina costuma ser torcer o nariz. Faz sentido. Mas é preciso perceber que a disciplina tem um lado bom e que nos ajuda a viver melhor. A questão é compreender a importância da disciplina verdadeira, aquela que é um compromisso com nós mesmos, e ter critérios para saber como incluí-la na sua vida na medida certa.

Um trem fora dos trilhos não vai a lugar nenhum. Os trilhos, portanto, são fundamentais para levar o trem adiante, até seu destino final. Só que a viagem é bem melhor se soubermos apreciar as paisagens pelo caminho. Pegou? Bom, vamos devagar com esse trem. Uma pequena reflexão disciplinada ajuda a compreender a coisa toda.

Disciplina? Credo! 
A maior parte das pessoas enxerga a disciplina embaçada por uma camada de preconceitos. Desde a escola somos ensinados que ela é a parte ruim e chata das coisas. Para começar, cada assunto a ser estudado já leva o nome de quê? De disciplina. Sem falar no conteúdo (não me falem de matemática e geometria, que começo a dormir na mesa). Além disso, em lares mais durões, basta um filho sair da linha para alguém dizer que falta disciplina. Junte a essa pedagogia questionável o fato de que passamos por uma ditadura militar que, sob o pretexto de disciplinar o país, acabou oprimindo todo mundo. Faltou pouco para mudar o lema da bandeira para Disciplina e progresso.

Dá para perceber o que há de ruim nesses exemplos? Claro, em todos eles a disciplina vem de fora. Não foi a própria pessoa quem definiu o objetivo nem o caminho para alcançá-lo. As regras vieram impostas, estabelecidas por outras pessoas. Faz toda a diferença. Num certo sentido, essa disciplina imposta é até mais fácil. Basta ser obediente, afirma a jornalista Lia Diskin, uma das fundadoras da Associação Palas Athena. Mas ela alerta: ser capaz de receber e cumprir ordens não nos faz uma pessoa disciplinada, no sentido mais nobre da palavra. Ser disciplinado de verdade é nos comprometermos com nossas próprias escolhas, percebermos que as metas que fixamos exigem percorrer um caminho e ver sentido na própria caminhada.

Neste significado, mais autêntico, a disciplina é um instrumento de nossa evolução pessoal. Quando estipulamos uma meta pessoal e a cumprimos, ganhamos uma dose extra de confiança em nós mesmos, ganhamos musculatura interna, diz Lia Diskin. A disciplina tem efeitos extraordinários na construção do caráter. Pergunte aos grandes pianistas e eles vão concordar ninguém domina um instrumento tão complexo levando a vida na flauta.

Não é à toa que essa organização interior tem um lugar importante na sabedoria oriental. Chegou até o mundo do trabalho, como um dos mandamentos do modelo de administração chamado kaizen, baseado no aprimoramento contínuo e na disciplina de cada envolvido. Mas também está por trás de muitos ensinamentos e da própria forma de ensinar de alguns povos orientais.

Foi o que o faixa-preta Marcos Cavagnolli descobriu praticando o aikidô.Nessa arte marcial, durante os treinamentos, cada praticante se cumprimenta a cada golpe. De forma alguma esse é um gesto vazio. Diante de você está, a cada segundo, alguém que vai poder lhe ensinar algo e, mais do que tudo, caminhar com você para um aperfeiçoamento. Um dos preceitos do aikidô é o de que o praticante deve sempre concentrar a atenção em seu centro, o ponto onde estaria o seu equilíbrio. Se você se distrair e sair do seu centro, será levado pela força do seu adversário, disse Cavagnolli, enquanto rodopiava meu corpo no ar e me fazia rolar no tatame, durante nossa entrevista-treino.Faz sentido, comento, do chão, após um tombo. Na vida você também cai, caso se deixe levar, diz Marcos.

Faz mais sentido ainda. Nesse caso, a disciplina serve para que você esteja sempre atento a si mesmo e não se deixe levar por interesses diferentes dos seus. Disciplina é foco. É como uma bússola, que todo o tempo lembra aonde você quer chegar e evita que imprevistos ou interferências desviem você desse ponto. Como quem definiu esse norte foi você mesmo, essa disciplina interna é o contrário daquela que é imposta de fora.

Eu, meu adversário 
Acontece que, no tatame da vida, às vezes a gente é nosso próprio adversário. Eu explico: não é raro resistirmos à disciplina, mesmo que os objetivos tenham sido definidos por nós mesmos. Não é preciso ir longe para dar exemplos nessa época de final de ano. É só lembrar das manjadas listinhas de afazeres e autopromessas de Ano Novo. Nascem daquele desejo mágico de melhorar a vida, evoluir. Tudo muito louvável, mas, lá pelo meio do ano, cadê a lista?

Bom, disciplina não deve ser confundida com autoflagelação.É preciso deixar de lado as expectativas altas demais, afirma a professora de filosofia Lúcia Benfatti. Temos de levar em conta a medida humana. Em outras palavras, não adianta prometer que vai malhar para ficar com corpo de modelo, que fará um regime digno de faquir ou que militará pelos pobres como o bem-aventurado Betinho. A idéia é pavimentar uma estrada que leve aonde você quiser, mas é preciso ter critérios na escolha do destino. O principal deles: respeitar a si mesmo.

Tem mais. Lúcia lembra que o foco não deve estar no resultado, mas no ser humano que o busca. Isso também é sabedoria oriental. A professora de história da arte Hideko Honma descobriu essa lição ao aprender a moldar cerâmica. Cansada de falar dos aspectos teóricos da arte, ela viajou ao Japão para transformar seu conhecimento em prática. Em Arita, no sul do país, foi trabalhar no ateliê do mestre Tokume. Logo na segunda semana, recebeu uma tarefa que parecia irrealizável: fazer mil peças iguais de cerâmica. Pior. Só poderia confeccioná-las no intervalo das tantas atividades que cumpria desde que ingressara na oficina era ela quem limpava os banheiros, varria o local, preparava o chá e o servia às visitas. Serviço no torno, só nos minutinhos extras. A missão parecia tão impossível que Hideko chorou várias vezes. Mas, devagar, conseguiu juntar as mil peças. Não cabia em si de felicidade.

Aí, o mestre Tokume veio ver as peças.Essa não, começou o professor. Hummm,essa também não.Ah, olhe só essa, claro que não.Com um olhar sem dó, classificou quase todas as peças como não-boas, próprias para reciclagem. Sobraram cem. A fase dois do aprendizado consistia em fazer um pé nas peças e voltar a apresentá-las ao mestre.No final, restaram cinco.

Hideko voltou ao Brasil sem saber se tinha aprendido algo de verdade. Obstinada, meses após a volta ela ainda se empenhava em repetir a mesma peça, com toda a perfeição possível. Foi quando se lembrou de uma das poucas conversas que teve com seu mestre: Ao aprender uma forma, aprenderás todas. Zás! Nesse momento, ela se sentiu pronta e começou a experimentar e fazer de tudo no torno. Toda a precisão que adquiri ao moldar a mesma peça, da mesma forma, com o mesmo empenho, me permitiu ter precisão para moldar, centímetro a centímetro, formas diferentes, relata a ceramista. Hideko percebeu que tinha valido a pena perseverar, fazer o que parecia um grande sacrifício em busca de uma meta que ela mesma tinha definido dar forma à cerâmica. Só no final ela se deu conta de que não foi o objetivo, mas a caminhada, que teve o maior valor para ela.

O futuro vira presente 
A disciplina autêntica é assim: um compromisso com o futuro. Por isso, ela envolve uma dose de contenção, de abrir mão de prazeres imediatos em troca de uma conquista que é maior, mas que virá num prazo mais longo. Quando a gente se propõe a fazer uma dieta, por exemplo, tem de viver dezenas, centenas, milhares de momentos em que abre mão da satisfação imediata. É a tentação do bifinho, daquele quindinzinho ou de só mais um bombonzinho (na hora, a gente pensa em tudo no diminutivo). Nesse instante, é preciso lembrar que a empreitada em que nos engajamos irá dar prazer não agora, e sim no futuro, na hora em que a silhueta mais elegante aparecer ou tivermos evitado os riscos que as gordurinhas a mais implicam. Isso vale para outros bons comportamentos que a gente queira adotar ou maus hábitos que queiramos abandonar. É preciso sempre lembrar: o tempo passa e o futuro, um dia, vira presente.

O ator Pedro Paulo Rangel infelizmente está tendo que aprender essa lição a duras penas. Depois de levar por décadas um estilo de vida com alguns excessos, ele sofre com um problema pulmonar que de vez em quando lhe rouba a respiração e a voz.Com a capacidade respiratória prejudicada, ele criou um intervalo na peça Soppa de Letra, que está encenando, para descansar e conversar com o público. Pedro Paulo senta, explica sua história e deixa um alerta para as conseqüências de cada atitude na vida. Fiz 50 anos e resolvi ser esperto, driblar qualquer doença que pudesse ter pelos excessos que cometi. Parei de fumar, parei de beber,mudei meu cardápio e fui para a academia. Aí, fiquei doente, diz, em tom de brincadeira. Hoje ele gostaria de ter se cuidado melhor no passado. E adota a disciplina que considera que andou faltando. Continua vibrante, embora, às vezes,afônico. Cada espetáculo é uma celebração, um pequeno milagre da vida, após tanta dedicação, disse o ator,quando lhe perguntei sobre sua satisfação com a disciplina atual.

Exemplo oposto é o do mágico Célio Amino. Ele está se preparando para fazer seu primeiro documentário em filme. Daqui a 10 anos. Nos últimos dois anos ele freqüentou todo curso sobre o tema de que teve notícia.Agora faz um curso de roteiros aos sábados. A dedicação tem um bom motivo. Como prestidigitador, Célio é nota 10. Cara a cara com o público, materializa objetos na orelha da pessoa na primeira fila,faz pequenas coisas sumirem e chega a desaparecer, em espetáculos maiores, com automóveis inteiros. Mas, como cineasta, a coisa é diferente. Não tenho nenhuma habilidade para o cinema, embora seja um aficionado.

O mágico não gosta de usar a palavra disciplina: A vida não pode ser rígida, diz.Mas conhece bem o conceito. Trabalho pelos meus objetivos o tempo todo. Quando precisou evoluir em seu ofício de ilusionista, teve de estudar muito.Com técnicas de óptica e multimídia, passou a dar sumiço em coisas de mais de 3 metros, como os carros.As novas performances garantiram uma agenda cheia, com apresentações para centenas de pessoas,contratadas por montadoras de automóveis. Agora é a vez do cinema.Quando realizar a meta de fazer um documentário, será um momento muito especial, diz Célio. E aqui dentro ainda tenho outros sonhos. Esta talvez seja sua maior mágica: ver o futuro com antecedência e trabalhar para que se materialize.

Hora da farra 
Até agora falamos sobre como a disciplina nos mantém nos trilhos. Mas há o outro lado da moeda. Ninguém vive no futuro.As regrinhas podem ser inimigas da criatividade. E viver também é se alegrar, celebrar, fazer farra. Uma vida só de disciplina pode virar um eterno ir, sem nunca chegar. E até ser menos produtiva. Einstein não disse que o sucesso do gênio é 90% de transpiração e 10% de inspiração? Costuma ser mais raro essa inspiração aparecer no meio de rotinas e regras rígidas demais.

É por isso mesmo que disciplina e celebração são, em grande medida, complementares. Você persegue uma meta a longo prazo, mas não deixa de curtir o dia-a-dia ou comemorar as pequenas vitórias. Você mantém seu norte sem fechar os olhos para as novidades do caminho. Para desenvolver nossas qualidades, temos de cultivar nosso jardim todos os dias, afirma a filósofa Lúcia Benfatti.Mas se a gente só se preocupar em adubar, regar, tosar e aplainar, não terá tempo para sentir o aroma das flores.

Quem já passou por uma gravidez sabe bem o que é isso. São nove meses em que é preciso evitar excessos, conviver com pequenos desconfortos e aprender a lidar com a ansiedade. No final, a explosão de alegria que é o nascimento mostra que toda a disciplina compensou.Tudo fica melhor ainda se, ao longo desse período, aprendermos a festejar as alegrias, digamos, parciais. Como fez a antropóloga recifense Júlia Morim. Para espalhar sua felicidade durante a gravidez, ela começou a mandar mensagens aos parentes e amigos com relatos escritos por sua filha Maria, ainda antes de ela nascer.

Hoje fui com minha mãe ao médico. Engordamos 2 quilos. Ele examinou os olhos de mamãe e depois me apertou um pouquinho. Está tudo bem. Mês que vem voltamos lá, aí ele vai pedir um ultra-som e vocês vão poder me ver aqui dentro (tá tão bom!), dizia uma das mensagens. Não sei por quê, mas quando percebi já estava digitando as impressões dela, conta Júlia. Cada mensagem era recebida com festa. Ficou todo mundo ainda mais próximo e feliz. Foi só um aquecimento para a grande celebração que foi o nascimento de Maria, cheia de saúde, em outubro.

Em matéria de celebração, nada melhor do que ouvir um especialista. O palhaço João Grandão confessa que quase vive comemorando sem parar, mas Márcio Ballas, o ator que dá vida ao personagem, não esconde que tem uma rotina disciplinada.Faz exercícios de interpretação regularmente, ensaia novos quadros, estuda o momento certo de finalizar cada palhaçada.

João Grandão já fez rir crianças de campos de refugiados no Cazaquistão e em Angola, como parte das ações da ONG Palhaços sem Fronteiras. Para isso, Ballas teve de conviver com a dor de ver gente que perdeu casa, família e até seu país e passar, ele mesmo, por situações de desconforto. Coloco o nariz de palhaço e muda minha percepção do mundo, relata Ballas-João Grandão. O exercício é estar muito presente,para interagir com tudo o que está ao redor. O olhar fica apurado. Da experiência de atuar, Ballas retém a sensação de que cada segundo conta. Cada momento é único, não volta. Com isso na cabeça, é impossível não fazer uma aliança com a vida.

O escritor mexicano Octávio Paz já disse que a celebração é o momento em que o tempo deixa de ser uma sucessão e volta a ser o que foi e é originalmente: um presente em que passado e futuro por fim se reconciliam. A idéia de conciliação tem tudo a ver com nosso assunto. Presente e futuro, dever e prazer, disciplina e celebração são ingredientes que ficam melhores quando bem combinados. Mas essa é uma receita individual. Cabe a cada um procurar o ponto ideal da mistura.

LIVROS - INDICAÇÕES 
Hagakure O Livro do Samurai, Yamamoto Tsunetomo, Conrad 
A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, Eugen Herrigel, Pensamento 
Alegria, a Felicidade que Vem de Dentro, Osho, Cultrix 

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